quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Imaginando | Lost Souls


Outra das razões porque tenho andado ausente nestes últimos tempos, é porque tenho andado a escrever. Voltei a escrever com aquela intensidade e aquela sede que já não sentia à muito tempo. Este é o primeiro capítulo de algo que ando a pensar em escrever. Digam-me o que acham.



Naquela manhã acordei com o pressentimento de que tudo estava errado. Aquele sentimento que de vez em quando aparecia, e umas horas depois a notícia chegava. Da primeira vez perdi o telemóvel, da segunda a cadela da minha melhor amiga morreu, à terceira um autocarro da escola da minha irmã teve um acidente, por sorte ela nesse dia pediu para trocar com uma amiga de outro autocarro... e das outras prefiro não falar. Há já uns meses que não me acontecia. Acordava com este pressentimento. Este ardor no estômago, as mãos suadas e as pernas trémulas. Depois, nesse mesmo dia, descobria que algo acontecera. Da última vez tinha sido uma colega da minha irmã que, com 8 anos, engasgou-se e sufocou até à morte.

Já lá iam quase dois meses desde esse dia. Não voltei a ter nenhum pressentimento, como lhes chamo. Mas naquela manhã o meu estômago andava às voltas, acordei de sobressalto, com o coração acelerado e assim que tentei sair da cama as minhas pernas sucumbiram ao peso do meu corpo, acabando estatelada no chão. Percebi que algo de muito errado se ia passar. Só não sabia o quê.

Obriguei-me a levantar do chão, a custo, e tomei o pequeno almoço, algo que raramente fazia nessa altura. Comi 10 bolachas e bebi 2 canecas de leite. Demasiado, mas senti que ia precisar. Senti que não havia outra hipótese. E assim ergui a cabeça, ensaiei o sorriso do costume e saí de casa.

O caminho até à escola foi longo e doloroso. Na minha cabeça pairavam 1001 cenários possíveis, cada um mais assustador que o anterior, no entanto, nenhum tão trágico quanto a realidade que descobriria daí a algumas horas.

Assim que cheguei à escola fui deitada ao chão. Uma força vinda não sei bem de onde, não sei bem porquê embateu contra mim, fazendo com que eu chocasse com o duro alcatrão.

- Au! - gritei e apressei-me a levantar do chão e ajeitar a roupa.

- Parabéns!!! E desculpa. - só nesse momento olhei para a criatura que me atirara ao chão. Bernardo, um rapaz um ano mais velho, e muito maior que eu. É um querido. Nem sei como é que ele sabe que hoje é o meu aniversário, mas ele é uma pessoa especial para mim, apesar de não nos falarmos muito. - Estás bem?

- Obrigada. Eu estou bem. - digo e forço um sorriso enquanto ele me ajuda a apanhar os livros que tinha deixado cair no chão com o seu embate.

- Mas que cara é essa? Fazes 15 anos! É suposto estares contente. Este é o primeiro dia do resto da tua vida! - ele disse-me, sem sequer saber o quão certo estava. Este seria o último dia da minha vida tal como a conhecia, seria o primeiro dia do resto da minha vida.

- É só que estou ainda ensonada... foste o primeiro a dar-me os parabéns. Obrigada. - e abraçámo-nos.

Despedimo-nos e cada um seguiu para a sua aula. Ia ter educação física. Dirigi-me ao meu cacifo, guardei os livros lá dentro e tirei a mochila com o equipamento para a aula. Depois fui para o balneário onde encontrei a minha pseudo melhor amiga... Joana.

- Bom dia - ela disse-me como era costume. Não gostava dela, nem ela de mim, mas davamo-nos bem, simplesmente porque não tínhamos mais ninguém com quem nos dar.

- Olá. - respondi e continuei o meu caminho.

- O que é que tens hoje? - ela perguntou-me apercebendo-se do meu estado de nervosismo. Infelizmente conhecíamo-nos demasiado bem.

- Os pressentimentos voltaram. Mas hoje estão piores. - disse-lhe serenamente, tentando esconder o que me doía cada respiração. O que me custava estar ali à sua frente de pé, a tentar agir normalmente.

- Mas pior como? Tens a certeza que é mesmo um daqueles pressentimentos assustadores que tu tens, podes estar só um bocado cansada... - ela tentava sempre dar a volta a situação porque tinha medo daquilo que não conseguia explicar.

- Não. Eu tenho a certeza de que é um pressentimento outra vez. - disse-lhe - Só que desta vez vai ser algo muito mau. Não sei dizer bem o quê, mas vai ser muito mau. Tenho as mãos a tremer, já caí várias vezes hoje, mal me aguento em pé. Sinto a respiração pesada. Tenho a certeza. Tenho tanto medo...

A conversa ficou por ali. Mais ninguém se lembrou do meu aniversário, nem eu. E a Joana não gostava de ficar a falar destes assuntos, achava que podiam "irritar os deuses". Apenas recebi uma mensagem de parabéns de um amigo de quem me fui afastando ao longo dos anos. Um amigo que eu afastei... como sempre fazia nesse tempo.

A aula de educação física foi a mais difícil de toda a minha vida. Caí várias vezes enquanto corria. Estava sem forças. O professor mandou-me parar quando se apercebeu do meu estado.

- Marta, queres-me explicar porque é que estás assim, que nem consegues correr 100 metros sem tropeçares nos teus próprios pés? - perguntou-me ríspido.

- Não sei professor... acho que estou apenas cansada. Desculpe. Eu vou-me esforçar mais. - dito isto preparava-me para continuar com a corrida quando o professor me puxou pelo braço antes que eu me afastasse. Mais uma vez caí no chão e deixei-me ficar, sentada, com a cabeça apoiada nas mãos preparando-me para as perguntas que certamente se seguiriam. E não estava errada.

- Tu comeste esta manhã? - já não seria a primeira vez que ia para uma aula sem comer. Apenas acenei afirmativamente com a cabeça. - Tens a certeza? - Também não seria a primeira vez que lhe mentiria a esse respeito.

- Absoluta. Comi 10 bolachas e 2 copos de leite. Tenho a certeza que comi mais que suficiente, e antes que pergunte, foi há menos de 2 horas, por isso não, não estou com nenhuma quebra de açúcar... - disse apressadamente, apesar da voz cansada, antes que todas essas perguntas me fossem dirigidas.

- E então o que se passa contigo? O que é que tens hoje? - ele perguntou passando do tom chateado para o tom preocupado.

- Não sei... é só um dia mau. Um dia muito mau. Todos os temos, certo?!? - disse tentando acabar com a conversa que já me estava a chatear porque eu sabia perfeitamente o que se estava a passar, mas se o dissesse iriam achar que eu era louca, algo de daí a uns tempos se confirmaria, mas preferi não correr esse risco.

- Sabes que se estiveres com problemas podes falar comigo, certo? - ele disse compreensivamente, nunca entendi esta mania que os professores têm de dizer isto, afinal de contas nunca ninguém fala com os professores, mas pelos vistos todos eles gostavam de me dizer isto, como se realmente fossem meus amigos, mas nunca me abri com eles, os meus problemas não seriam resolvidos.

- Claro, não se preocupe - e forcei um sorriso daqueles já bem treinados em que as pessoas normalmente acreditavam.

- Por hoje estás dispensada da aula. Podes ir embora. Não estás em condições de fazer a aula.

- Obrigada. - peguei nas minhas coisas e fui para o balneário para trocar de roupa. Estava vazio. Isso era bom. Entrei e troquei de roupa. Ouvi música numa tentativa de relaxar e tentar descontrair, mas não resultou. Eu sabia que não ia resultar, mas ainda assim tive medo de não tentar.

A manhã passou-se... não me acalmei. Senti que não ia resistir. Nunca tinha sentido nada assim, com esta intensidade.

Não me consegui concentrar nas restantes aulas. Passei a aula de matemática a desenhar mandalas no caderno, e a de inglês a ler um livro. Até que finalmente tocou e todos saíram da sala. Como de costume fui a última a sair.

Era hora de almoço e dirigi-me para casa, como sempre. Almocei, arrumei a cozinha e fui arrumar o meu quarto. Só aí reparei num papel na minha mesa de cabeceira. Certamente já lá estava desde de manhã, mas com todo aquele alvoroço nem me apercebi. Peguei nele e sentei-me na cama a lê-lo.

"Parabéns minha querida,

Parece mentira... a minha menina já faz 15 anos. Há 15 anos que sou mãe. Desculpa não ter estado mais presente na tua vida ao longo destes 15 anos, mas espero que saibas o quanto eu te amo. Sabes, estou muito orgulhosa da pessoa em quem te estás a tornar, e quero agradecer-te por ao longo destes 15 anos me teres desafiado a ser uma pessoa melhor a cada dia que passa.

Muito Obrigada Marta, e feliz dia.

PS. Hoje às 20h00 estaremos todos em casa para jantarmos todos juntos. Se quiseres podes convidar uma amiga para vir connosco. Vamos ao teu restaurante preferido.

PSS. Estão aqui 10€ para ires almoçar com as tuas amigas. Aproveita.

Beijos,

a tua mãe que te ama muito,

Teresa."

Naquele momento, lembro-me, fui invadida por uma raiva enorme. Amachuquei a carta numa bola de papel e fiz pontaria ao balde do lixo. 

- Ahhh - gritei já com as lágrimas a transbordar dos meus olhos e a travarem caminho pelo meu rosto, até ao queixo, e depois aterravam nas minhas pernas. Como é que ela acreditava no que tinha escrito? Orgulhosa?!? Amigas?!? Ela nem me conhecia!

Ela nem sabia que só tinha uma pseudo melhor amiga porque afastava toda a gente. Ela nem sabia que eu tinha estes pressentimentos de vez em quando. Ela nem notava o cheiro a tabaco na minha roupa. Ela nem notava a cama por fazer durante dias a fim. Ela nem notava que almoçava sempre em casa. Ela nem notava que não saia à noite. Ela nem notava que não precisava do dinheiro que ela insistia em dar-me com regularidade. Ela nem notava... ela nem me conhecia. Ela nem sabia dos ataques de raiva. Ela nem sabia dos ataques de pânico. Ela nem sabia o quanto gozavam comigo. Ela nem sabia que todas as noites antes de dormir eu chorava. Ela nem sabia que durante um ano me cortei nas pernas todos os dias. Ela nem sabia a má pessoa que eu era, capaz de magoar qualquer um que me fizesse frente.

Ela nem notava, nem nunca notou, nem nunca notaria. Porque era assim que ela era. Era assim que ela agia, e não sabia agir de outra maneira. E apesar de todo o rancor que eu lhe guardava, nunca deixei de a amar, nem por um único segundo, porque era minha mãe. Mas eu não sabia. Não o sabia naquele momento, no dia do meu aniversário, no dia do meu 15º aniversário, pelas 14h00 da tarde, ali, sentada naquela cama a chorar e a gritar. Eu nem sabia. E quando o soube foi tarde demais.

Ainda fiquei ali, naquele estado mais algum tempo, mas não muito. Apressei-me a pôr as ideias em ordem e a preparar-me para voltar a sair de casa. Ainda com o pressentimento de que algo iria acontecer, ainda cansada e com o estômago apertado, ainda sem forças e com aquele nó na garganta, mas nunca gostei de desistir, e isso fez-me continuar.

Peguei no violino, e nas sapatilhas de ballet. Mais um dos caprichos da minha mãe. Nunca gostei. Nunca fez o meu género, aliás, nunca gostei de fazer o que era suposto fazer, sempre a tentar fugir às regras, mas por vezes há que nos cingir ao que nos impõe... e isto foi-me imposto desde sempre, e eu há já 10 anos que aceitava e me submetia a estas vontades da minha mãe. E naquele dia nada foi diferente.

Saí de casa, fui para o conservatório, depois para a academia... não foi dos melhores dias, admito, mas eu esforcei-me, e apenas me desiludi a mim, já não havia mais ninguém para desiludir.

Mas aquela ansiedade não passava. Aquele tremor das minhas mãos, aquela certeza incerta de que algo se passava, de que algo ia acontecer.

Como sempre fui a primeira a chegar a casa. Eram 19h30. Ela disse que às 20h00 estariam todos em casa. Fui tomar um duche, sequei o cabelo, escolhi um vestido e deitei-me na cama à espera que aparecesse alguém, ou que tocasse um qualquer telefone a informar que não podiam vir.

Mas nessa noite nunca chegaram, nunca nenhum telefone tocou. E ali, deitada sobre a cama, deixei-me ficar, no escuro, a olhar o teto e a ouvir o relógio e as horas a passar. E nesse momento eu entendi tudo. Entendi o pressentimento. Entendi a ansiedade. Entendi o atraso. Entendi o que estava para vir.

E chorei. Não porque estava sozinha, não porque sabia o que ainda não me tinham dito, mas porque estava livre. Não sei se era tristeza, alegria, raiva, ódio, ou todos juntos. Não sei, nunca soube. Mas ali fiquei.

Até que a noite caiu, e a casa continuou vazia, e ninguém chegou, e eu estava sozinha, e nenhum telefone tocou, nenhuma chave foi introduzida na fechadura, e o tempo passava, e o silêncio inundava a casa, e a escuridão apoderava-se de mim... e ali fiquei, acordada, de olhos abertos para o teto, focados nos pensamentos que me invadiam a mente, até à manhã seguinte, em que a campainha soou, mas eu sabia que não eram eles. Não seriam nunca mais. Mas não chorei ao ouvir a notícia, nem fiquei admirada. Eu sabia, sem sequer o saber.
Margarida

2 comentários:

Unknown disse...

Está maravilhoso e bastante profundo! Acho que nunca tinha lido nada assim! Apesar de comovente é o melhor capítulo que li na minha vida! Espero que continues porque tens muito mais do que um talento para escrever! Não tenho palavras para o descrever! Beijinhos!
teengirlsarebloggers.blogspot.com

Unknown disse...

Nem sei o que dizer sem ser "wow, raio da miúda"! Tu tens um talento enorme, nem sabes o tamanho dele. Tens mais potencial do que muitos escritores da atualidade. És espetacular. Parabéns! :)

O meu blog (agradecia muito a tua visita!) - ageekgirlsblog.blogspot.pt